TEXTOS


QUESTIONÁRIO DO SIMPÓSIO DE YALE SOBRE POESIA EXPERIMENTAL, VISUAL E CONCRETA DESDE A DÉCADA DE 1960 (Universidade de Yale, EUA, 5-7 de abril de 1995)

(Perguntas formuladas por K.David Jackson, Eric Vos & Johanna Drucker. Respostas de Augusto de Campos)

1. Que dimensões da poética contemporânea estão diretamente envolvidas com o concretismo?

R. Vejo a poesia concreta diretamente engajada com as práticas da poesia de vanguarda, experimental ou - como será talvez mais adequado chamá-la - poesia de invenção. Creio que, ao surgir, nos anos 50, coube a ela restabelecer o contacto com a poesia das vanguardas do início do século (futurismo, cubofuturismo, dada et alia), que a intervenção das duas grandes guerras e a proscrição das ditaduras nazista e stalinista haviam condenado à marginalização. Movimento semelhante ocorreu, na mesma década de 50, na área musical, com a recuperação da obra do Grupo de Viena (Schoenberg, Webern, Berg), a redescoberta dos grandes experimentalistas individuais (Ives, Varèse,etc ) e a intervenção dos novos compositores de vanguarda que se impuseram a partir de então, de Boulez e Stockhausen a Cage. Em confronto com os poetas que Pound denominava de "masters", "diluters", etc, os praticantes da poesia concreta se situam ou aspiram a se situar, programaticamene, na categoria dos "inventors", ou seja, os que estão engajados na perquirição de novas formas.

 

2. Como você vê os precedentes históricos da sua própria obra concreta?

R. Para mim, o marco divisório da linguagem poética de invenção, na modernidade, é a obra Un Coup De Dés de Mallarmé (1897), o poema concebido intersemioticamente como estrutura fragmentária ("subdivisions prismatiques de l'Idée"), na confluência do painel visual e da partitura musical. A partir da compreensão dessa obra foi possível rever as experiências das vanguardas do começo do século e caminhar para novas elaborações. "Sans présumer de l'avenir qui sortira d'ici, rien ou presque un art", o último Mallarmé - de Un Coup De Dés a Le Livre - cataliza e radica as principais alternativas futuras da linguagem poética. Nessa obra e nos desenvolvimentos subsequentes das vanguardas históricas, que vão ser reciclados e radicalizados pela poesia concreta, encontram-se os pressupostos formais da poesia da Era Tecnológica, que se expande ao longo da segunda metade do século. Além de Mallarmé e das vanguardas do início do século, eu colocaria como precedentes diretos, Ezra Pound (o "método ideogrâmico", a colagem e a metalinguagem dos Cantos), James Joyce (o caleidoscópio vocabular do Finnegans Wake e sua polileitura textual), cummings (a atomização e o deslocamento sintático dos seus poemas mais experimentais) e, num segundo plano, por mais idiossincrática e menos rigorosa, a prosa experimental, minimalista e molecular, de Gertrude Stein. No caso particular da poesia brasileira, o Sousândrade (séc.19) de O Inferno De Wall Street, com seus epigramas-mosaicos pré-colagísticos, Oswald de Andrade e o poema-minuto "antropófago", a engenharia construtivista de João Cabral. Numa consideração transdisciplinar, mencionaria as transformações da linguagem musical de Webern a Cage e da visual de Malévitch/Mondrian a Duchamp.

 

3. Quais são os fundamentos teóricos que distinguem as suas obras das dos precedentes históricos ou dos contemporâneos?

R. Em vista do próprio contexto histórico em que surgiu, a poesia concreta obviamente não participa nem da ideologia do Simbolismo, que ainda subjaz na poética de Mallarmé, nem das utopias mecanopolíticas futuristas, nem do niilismo dadá. A poesia concreta se situou como uma poética da objetividade, tentando colocar simplesmente suas premissas nas raízes da linguagem, com o intento de criar novas condições operacionais para a elaboração do poema, no quadro da revolução tecnológica. Tecnicamente, os poetas concretos se distinguem dos seus antecessores pela radicalização e condensação dos meios de estruturação do poema, no horizonte dos meios de comunicação da segunda metade do século. Isso implicou, entre outras características, nas seguintes: maior rigor construtivo, em relação às experiências gráficas de futuristas e dadaístas; maior concentração vocabular; ênfase no caráter não-discursivo da poesia com supressão ou relativização dos elos sintáticos; explicitação da materialidade da linguagem sob os aspectos visual e sonoro; trânsito livre entre os estratos verbais e não-verbais.

Poemas como "terra" de Décio Pignatari ou "cristal" de Haroldo de Campos, dos anos 50, ou como os meus "cidadecitycité" ou "olho por olho" dos anos 60 tipificam essas características.

Distinguem-se os poetas concretos de outras experiências (zaum, lettrisme, poesia fonética), por não desprezarem os valores semânticos, e os colocarem, antes, em pé de igualdade com os outros parâmentros materiais, visuais e sonoros, do poema. Diferenciam-se também da "chance poetry" de Cage e outros por não abdicarem do controle da estrutura do poema, embora admitindo intervenções do acaso.

 

4. Em que extensão é a obra que você está discutindo diferente da obra doss poetas concretos dos anos 50 e 60? De que forma?

R. Passadas quatro décadas das primeiras experiências de poesia concreta, eu diria que os anos 50 a 60 caracterizaram o período de maior ortodoxia do movimento, algo como a serialização de todos os parâmetros musicais proposta pelos músicos pós-webernianos europeus. Nas décadas subseqüentes ocorreu uma maior flexibilização da linguagem poética em favor da recuperação de estruturas frásicas (em relação ao elementarismo da 1ª fase, poemas constituidos de uma só palavra ou de poucos substantivos espacializados) e da incorporação do acaso (a partir das intervenções de Cage), mas essa flexibilização não deixou de ter em conta o rigor compositivo e o princípio da funcionalidade ou da necessidade formal do poema.Tal abertura se mostrou inevitável em face da redundância de processos e de sua degradação, provocada pela inconsequência de muitas realizações, especialmente na área da poesia visual, caracterizadas por uma insignificância semântica análoga à de muitos "labirintos" gráficos barrocos, que, por sob a camada superficial de reuintados crochês gráficos, não exibiam mais que a vacuidade de elogios epitalâmicos ou funerários. Não deve confundir-se também tal abertura com a aparente complexidade de textos simplesmente caótico-surrealistas que utilizam o espaço gráfico sem qualquer sustentação formal satisfatória. As obras dos anos 80/90 são, por um lado, mais livres em relação à ortodoxia dos primeiros anos e, por outro lado, participam mais intensamente do desafio das novas tecnologias, que conduzem aos poemas digitalizados, à animação gráfica e sonora, aos processos multimídia ae intermídia. Nesse sentido, os "wishful thinkings" dos anos 50 se materializam agora nos computadores, espaço congenial para as aventuras "verbivocovisuais".

 

5. Há uma poética do concretismo ou é a poesia concreta antes um artifício formal do que uma premissa conceitual?

R. Tal como a vejo, a poesia concreta não surgiu como uma especialização formal dentro do campo da poesia moderna, como se poderia falar do "carmen figuratum" da Antiguidade, mas, antes, como uma proposta de radicalização da linguagem poética, na qual os aspectos visuais constiuem apenas um dos parâmetros relevantes. O que se buscou com a poesia concreta foi recuperar a especificidade da própria linguagem poética, a materialidade do poema e a sua autonomia, a partir de uma revisão e radicalização dos procedimentos da poesia moderna e da elaboração de um novo projeto criativo no contexto das novas mídias.

 

6. Tese: " O Concretismo, uma das tendências vanguardistas mais radicais deste século, engajado numa revalorização crítica do objeto artístico e o seu lugar na sociedade, trouxe um novo meio de olhar e ler a tradição. Ele foi um precursor das mais recentes tendências neo-barroca e pós-moderna."
Gostaríamos de ter sua avaliação ou julgamento sobre essa perspectiva artística do ponto de vista de um artista participante, enquanto ela se relaciona com a sua própria obra ou poética ou com a sua apreciação crítica da experiência concretista.


R. Não creio que nenhuma das expressões - "neo-barroco" ou "pós-moderno" - seja suficientemente adequada para caracterizar o momento atual em suas possíveis relações com a poesia concreta. O termo "neo-barroco" é demasiado carregado de historicidade e pode levar a confusões, se se considera que ele costuma abranger práticas da poesia hispânica, latino-americana, não vinculadas às poéticas do concretismo. Quanto ao "pós-moderno" é um conceito de contornos indefinidos, pouco sustentável, na medida em que os pressupostos do "moderno" ainda são os vigentes, parecendo antes um rótulo que serve de pretexto a ecletismos de índole conservadora, na verdade pré ou anti-modernistas. Eu ficaria com a primeira frase do enunciado, acrescentando em lugar de "Ele foi um precursor, etc", que (a poesia concreta) retomou as especulações da linhagem experimental da poesia contemporânea, firmando relevantes pressupostos para o desenvolvimento da poesia no contexto das novas mídia que se expandem na fase tecnológica da modernidade. Constituiu, no mínimo, um movimento importante para manter acesa a ideologia revolucionária da experimentação permanente e autônoma e redefinir a atuação da vanguarda na 2ª metade do século, assumindo-a sob a categoria de "poesia de invenção" (em contraste com a mais palatável "poesia de expressão") como resistência à massificação e à banalização impostas aos novos meios de comunicação e ao imobilismo da literatura convencional.

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